Artigo: Da possibilidade de atribuição de prenome ao natimorto - Jéverson Luís Bottega e Adelle Sandri
Publicado em 27/10/2016
O serviço de registro civil das pessoas naturais é espécie de registro publico que visa outorgar publicidade a fatos jurídicos relacionados à vida das pessoas físicas. Aos oficiais de registro, delegatários de tais serviços, compete a prática dos atos relacionados na legislação pertinente aos registros públicos, especialmente na Lei nº 6.015/73.
Como o próprio nome indica, os registros civis das pessoas naturais têm como foco de interesse a pessoa física ou natural, vale dizer, o indivíduo, o ser humano, tal como ele é levado em consideração pelo direito. Cabem ao registrador civil, portanto, o registro e publicidade de fatos jurídicos inerentes à pessoa, tendo em vista que tais fatos repercutem não apenas na esfera do individuo, mas interessam a toda a sociedade[1]. As atribuições do RCPN podem ser dividas em duas espécies: a) atribuições ordinárias: Serão registrados/averbados no RCPN: a) nascimentos; b) habilitações e casamentos; c) casamentos religiosos para efeitos civis; d) conversão da união estável em casamento; e) proclamas; f) óbitos; g) natimortos; h) emancipações expressas; i) interdições; j) ausências; k) morte presumida; l) adoção; m) todos os atos que alterarem, modificarem ou retificarem os registros lavrados. b) atribuições especiais: Serão registrados no RCPN: a) transladação do nascimento, casamento e óbito de brasileiros em país estrangeiro; b) registro de nascimento de nascidos no Brasil filhos de pais estrangeiros a serviço de seu país; c) opção de nacionalidade. A Lei nº 6.015/73, além de tratar de temas gerais dos registros públicos, disciplina as regras específicas e as atribuições de cada um dos serviços registrais. Importante destacar, contudo, que, considerando que a Lei nº 6.015 foi editada em 1973, portanto, anteriormente à atual Constituição da República Federativa do Brasil e ao Código Civil Brasileiro vigente, algumas normas previstas na citada lei devem ser interpretadas à luz de tais diplomas. Quanto ao registro da criança nascida morta, a Lei nº 6.015/73 estabelece, em seu artigo 53, o seguinte: No caso de ter a criança nascido morta ou no de ter morrido na ocasião do parto, será, não obstante, feito o assento com os elementos que couberem e com remissão ao do óbito. §1º No caso de ter a criança nascido morta, terá o registro feito no livro "C Auxiliar", com os elementos que couberem. § 2º No caso de a criança morrer na ocasião do parto, tendo, entretanto, respirado, serão feitos os dois assentos, o de nascimento e o de óbito, com os elementos cabíveis e com remissões recíprocas. (grifei) Conforme se verifica, o dispositivo acima transcrito não insere, expressamente, o nome entre os requisitos de escrituração do registro do natimorto. Em decorrência disso, discute-se acerca da possibilidade de os pais atribuírem nome ao natimorto. O direito ao nome, sinal que identifica uma pessoa dentro do grupo social, compreende o prenome e o sobrenome (patronímico/apelido de família)[2]. Assim, prevalecendo o entendimento de que, por falta de previsão legal, não pode ser atribuído nome ao natimorto, tal negativa deve estender-se tanto ao prenome, quanto ao sobrenome. O que ora se defende é, entretanto, a possibilidade de os pais atribuírem nome (prenome e sobrenome) ao natimorto. Isso porque, em que pese não exista norma que exija tal atribuição, o fato de o artigo 53 acima transcrito prever que o registro da criança nascida morta será feito “com os elementos que couberem”, permite ao registrador, na qualidade de profissional do direito[3], interpretar a referida norma de forma sistemática e teleológica, a fim de identificar os fins sociais e jurídicos capazes de auxiliar na identificação dos “elementos cabíveis” citados na legislação. Nesse sentido, a possibilidade de atribuir nome ao nascituro e, consequentemente, ao registro do natimorto ganhou força na doutrina e na jurisprudência a partir do disposto no artigo 2º, do Código Civil Brasileiro. O referido dispositivo legal assim estabelece: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. (grifei) A norma acima transcrita prevê, de forma literal, que a personalidade civil começa com o nascimento com vida, que se verifica com a existência da respiração (docimasia hidrostática de Galeno), pouco importando a ruptura do cordão umbilical. No que se refere ao nascituro, o legislador ressalvou os seus direitos desde a concepção. Em que pese a doutrina tradicional entenda que o nascituro só tem os direitos que a lei[4] lhe assegura e que a confirmação de tais direitos depende do nascimento com vida, os tribunais, com base na doutrina mais recente, têm avançando na interpretação do artigo 2º, do CCB, atribuindo-lhe o caráter de norma ampla, o que permitiria reconhecer alguns direitos da personalidade ao nascituro, mesmo sem previsão legal. Confirmando esse entendimento, foi editado o enunciado número 1, na Primeira Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, com o seguinte teor: “Art. 2º: A proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como: nome, imagem e sepultura.” (grifei) O enunciado acima transcrito tem como base jurídica a teoria concepcionista da capacidade civil. Na doutrina[5], há, basicamente, 3 teorias que tentam explicam o início da capacidade civil: a) TEORIA NATALISTA - teoria clássica, defendida, por exemplo, por Caio Mário, Sílvio Rodrigues, Sílvio Venosa. Os partidários dessa teoria, levando em conta a interpretação literal do artigo 2º, do CCB, afirmam que a pessoa natural só adquire personalidade a partir do nascimento com vida. Nesse sentido, embora a lei ponha a salvo direitos (futuros) do nascituro, este só teria expectativa de direitos. O problema dessa teoria é não considerar o nascituro como pessoa, mas como coisa, negando-lhe os seus direitos fundamentais. b) TEORIA DA PERSONALIDADE CONDICIONAL – teoria defendida, por exemplo, por Washington de Barros Monteiro, Serpa Lopes, Arnaldo Rizzardo. Os defensores dessa teoria argumentam que a personalidade civil começa com o nascimento com vida e que o nascituro tem personalidade desde a concepção. Contudo, tal personalidade estaria sujeita a uma condição: o nascimento com vida. Nesse sentido, os direitos do nascituro são, assim, direitos eventuais. O problema dessa teoria é estar apegada aos direitos patrimoniais, não respondendo ao apelo de direitos da personalidade a favor do nascituro, que, diante da sua relevância, não podem estar sujeitos a condição, termo ou encargo. c) TEORIA CONCEPCIONISTA - teoria defendida, por exemplo, por Cristiano Chaves de Farias, Nélson Rosenvald, Carlos Roberto Gonçalves, Flávio Tartuce. Os partidários dessa teoria dão mais ênfase à segunda parte do artigo 2º, do CCB. Assim, entendem que a personalidade jurídica da pessoa natural começa a partir da concepção, de forma que o nascituro, antes de nascer, já adquire direitos. Maria Helena Diniz, que é seguidora da teoria concepcionista, classifica a personalidade jurídica em: a) personalidade jurídica formal: relacionada com os direitos de personalidade, que o nascituro já tem desde a concepção, independentemente do nascimento com vida; b) personalidade jurídica material: afeta aos direitos patrimoniais, que o nascituro só adquire com o nascimento com vida, pois se encontravam em estado potencial. Para alguns defensores dessa teoria, o nascituro (tem vida intra uterina) e até o embrião (com vida ultra uterina ou in vitro) têm personalidade jurídica. Segundo Flávio Tartuce, na doutrina civilista atual, prevalece o entendimento de que o nascituro é pessoa humana, ou seja, que ele tem direitos reconhecidos em lei, principalmente os direitos de personalidade. O que lhe faltaria, portanto, é, apenas, a personalidade jurídica material, que seria adquirida com o nascimento com vida. Prevalecendo o entendimento defendido pelo Conselho da Justiça Federal na Primeira Jornada de Direito Civil – de que a proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como o nome –, o registrador não poderia negar a atribuição de nome ao natimorto no momento do registro. Isso porque são características do direito da personalidade: a) o caráter absoluto, o que o impede de ser limitado pela vontade humana, salvo em havendo previsão legal; b) a generalidade, que o estende a todas as pessoas, indistintamente (inclusive ao nascituro); e c) o fato de serem inerentes à pessoa humana, ou seja, basta ser pessoa que terá direito da personalidade. Pelo exposto, considerando que o natimorto possui registro civil obrigatório; considerando que o nascituro, independentemente do nascimento com vida, possui personalidade jurídica formal (doutrina majoritária); e considerando que o direito ao nome é direito de personalidade, o registrador pode lavrar o registro do natimorto com o nome indicado pelos pais. Conforme demonstrado, a questão relativa à indicação de nome ao natimorto pode ser defendida juridicamente. Contudo, é o fim social da indicação do nome ao natimorto que confere relevância à discussão. Após a concepção, a expectativa do nascimento com vida faz com que a família, especialmente os pais, iniciem relação de afeto com a pessoa gerada, sendo que um dos primeiros indicativos dessa relação é atribuir-lhe nome. O fato social relatado, em que pese, nesse caso, exista há muito tempo, está, como de costume, adiantado em relação à disposição normativa que expressamente o regule. Tramitam no Congresso Nacional dois Projetos de Lei (PLC 88/13 e PL 5.171/13) que visam criar dispositivo legal prevendo a indicação de nome ao natimorto. Diante do atraso do legislador, especialmente em razão da sólida doutrina a respeito, cabe a nós, oficiais de registro, interpretar a lei de modo a abrigar o fato social relatado nos livros do Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais. Jéverson Luís Bottega, Registrador Civil das Pessoas Naturais e de Imóveis de São Lourenço do Sul, Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra-PT; Adelle Ribeiro Coelho Sandri, Registradora de Imóveis de Canguçu, Mestranda em Direito Civil pela Universidade de Coimbra-PT. [1] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos - teoria e prática. 2ª ed. São Paulo: Método, 2011, p. 22. [2] Artigo 16, do CCB - Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome. [3] Art. 3º, da Lei nº 8.935/94 - Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro. [4] Direito sucessório (artigo 1.789, do CCB), doação ao nascituro (artigo 542, do CCB), reconhecimento antecipado de paternidade (artigo 1.609, do CCB), alimentos gravídicos (Lei nº 11.804/08) etc. [5] TARTUCE, Flávio. Direito Civil 1 – Lei de introdução e parte geral. 8. Ed. Rio de Janeiro: Forence; São Paulo: Método, 2012. Fonte: ANOREG-BR | ||
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