Artigo: Convenção de Haia – A problemática dos documentos particulares – Por Igor Emanuel
Publicado em 09/08/2017
A Convenção sobre a Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros, celebrada em Haia na data de 05 de outubro de 1961, está em vigor no Brasil desde agosto de 2016.
Também conhecida como Convenção da Apostila ou Convenção de Haia, tornou mais simples e ágil a tramitação de documentos públicos entre o Brasil e os mais de cem países signatários do acordo, trazendo significativos benefícios para cidadãos e empresas que necessitam tramitar internacionalmente documentos como diplomas, certidões de nascimento, casamento ou óbito. No Brasil, a Convenção de Haia foi aprovada pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo 148, de 6 de julho de 2015, ratificada no plano internacional por meio do depósito do instrumento de adesão perante o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino dos Países Baixos, em 2 de dezembro de 2015, e promulgada no plano interno conforme Decreto 8.660, de 29 de janeiro de 2016, regulamentado pela Resolução nº 228/2016-CNJ, e finalmente aprimorada pelo Provimento 58/2016-CNJ. Desde a edição da Resolução nº 228/2016-CNJ restou claro e evidente que o apostilamento se destinaria a “validação” internacional dos documentos públicos nacionais. RESOLUÇÃO Nº 228/2016-CNJ CONSIDERANDO a adesão da República Federativa do Brasil à Convenção sobre a Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos [...] Art. 6º São autoridades competentes para a aposição de apostila em documentos públicos [...] Art. 7º A apostila deverá estar em conformidade [...] VI – constar o nome do signatário do documento público [...] PROVIMENTO Nº 58/2016-CNJ Art. 1º Dispor sobre os procedimentos a serem adotados pelas autoridades competentes para a aposição de apostila em documentos públicos [...] Entretanto, ousamos divergir no sentido de que a melhor interpretação desses comandos seja de que o apostilamento sirva não só aos documentos puramente públicos, mas também àqueles que, mesmo sendo redigidos de forma privada, contenham informações de interesse público. Na verdade, há certa obscuridade no tocante a questão dos documentos particulares. Isso por que os comandos normativos emitidos pelo CNJ são categóricos com relação à necessidade de o documento apostilável ser de origem pública. Entretanto, o texto original da Convenção de Haia, prescreve a possibilidade de apostilamento de documento (público ou não, talvez), cuja assinatura tenha sido reconhecida. Ou seja, levantou-se a questão de que o documento de origem particular, uma vez submetido ao crivo notarial do reconhecimento de firma, seria passível de aposição de apostila. Vejamos o texto original da Convenção CONVENÇÃO DE HAIA Artigo 1º A presente Convenção aplica-se a documentos públicos feitos no território de um dos Estados Contratantes e que devam produzir efeitos no território de outro Estado Contratante. No âmbito da presente Convenção, são considerados documentos públicos: a) Os documentos provenientes de uma autoridade ou de um agente público vinculados a qualquer jurisdição do Estado, inclusive os documentos provenientes do Ministério Público, de escrivão judiciário ou de oficial de justiça; b) Os documentos administrativos; c) Os atos notariais; d) As declarações oficiais apostas em documentos de natureza privada, tais como certidões que comprovem o registro de um documento ou a sua existência em determinada data, e reconhecimentos de assinatura. Entretanto, a presente Convenção não se aplica: a) Aos documentos emitidos por agentes diplomáticos ou consulares; b) Aos documentos administrativos diretamente relacionados a operações comerciais ou aduaneiras. Como é de se notar, no texto original da Convenção de Haia há franco direcionamento para que o apostilamento seja realizado em documentos de origem pública. Entretanto, esclarece desde logo o que é considerado documento público para as finalidades da Convenção de Haia. E surge aí a figura do “Reconhecimento de Assinatura”. Pelo que se depreende do texto base da Convenção de Haia (texto original), a ideia que se tem de documento público deve ser dilatada para que os fins que se deseja com o apostilamento sejam alcançados. Conforme assevera o Manual da Apostilha[1] publicado pelo CNJ (pág.53), o objetivo da Convenção é facilitar a utilização de documentos públicos no exterior. Assim, o âmbito de aplicação material da Convenção – e, consequentemente, o conceito de documentos públicos ‑ devem ser entendidos amplamente e possuir uma interpretação abrangente, para garantir que o maior número possível de documentos se beneficie do processo de autenticação simplificada pela Convenção. Sabe-se que não é possível estabelecer uma lista completa de todos os documentos públicos que podem ser gerados nos Estados Contratantes, ou listar todos os funcionários e autoridades que podem gerar documentos públicos nesses Estados. Neste sentido, para fornecer orientação, a Convenção da Apostila enumerou quatro categorias de documentos que são considerados “documentos públicos” para fins do apostilamento. E são eles: a) Documentos provenientes de uma autoridade ou um funcionário oficial ligado a qualquer jurisdição do Estado, incluindo aqueles oriundos do Ministério Público, de um escrivão de direito ou de um oficial de diligencias; b) Documentos administrativos; c) Atos notariais; d) Declarações oficiais, tais como menções de registro, vistos para data determinada e reconhecimento de assinatura, INSERIDOS EM ATOS DE NATUREZA PRIVADA. Em que pese o próprio manual esclarecer que a Validação Oficial[2] não contempla irrestritamente todo e qualquer documento de origem privada, abre campo para as mais diversas interpretações e análises. A primeira delas diz respeito a: O QUE SÃO DOCUMENTOS PÚBLICOS? No cenário jurídico brasileiro, em síntese, documento público seria aquele elaborado por uma autoridade ou oficial público no exercício de sua função. Exemplos: SENTENÇAS JUDICIAIS, ESCRITURAS PÚBLICAS, CERTIDÕES DE NASCIMENTO, CASAMENTO, ÓBITO etc. Mas ouso ir além deste conceito restritivo. Será que a necessidade de se apostilar documentos se restringe tão somente àqueles de origem pública? Evidentemente que não! Imagine-se, por hipótese, que uma determinada pessoa deseje fazer prova de seu vínculo empregatício com uma determinada empresa e para isso precise apostilar uma cópia autenticada de sua CPTS (permitido), e em anexo uma Declaração de Existência de Vínculo Empregatício emitida pela empresa (supostamente excluído do rol apostilável por ser particular). Ou que uma determinada pessoa precise redigir Declaração de Reconhecimento de Maternidade[3], em confirmação aos dados esposados na certidão de nascimento do próprio filho. Notemos que a interpretação flexível e ampliativa da Convenção de Haia é de suma importância ao usuário do serviço, pois visa atender não só às necessidades do país de emissão, mas também do país de recepção e do próprio usuário. A interpretação restritiva das regras nacionais do apostilamento tem acarretado ao usuário um ônus que entendo ser desproporcional e desnecessário. Além de limitar a abrangência de documentos, impõe ao estado de destino uma cultura de burocracia, data vênia, tipicamente brasileira. Penso que a Convenção de Haia não é um patrimônio canarinho, e sim uma conquista/dever mundial. A capilaridade ofertada pela Apostila de Haia não pode se restringir indiscriminadamente às regras de um país, mas deve sucumbir frente ao interesse mundial. Ademais, vigora no Brasil a presunção de veracidade dos documentos e declarações (publicas e/ou privadas), de modo que, nesta linha de defesa, qualquer documento cuja assinatura seja reconhecida por Tabelião de Notas, não atentatório à moral, aos bons costumes e a lei interna, deve ser passível de apostilamento. Mais ainda, se assinados em meio particular, na presença de duas testemunhas, tornam-se, inclusive, título executivo extrajudicial, conforme previsão do artigo 784, III do NCPC/2015. Em complemento, registre-se que a regra dos documentos emitidos em solo brasileiro é de que sejam privados (declarações, contratos etc). Em que pese nossa burocracia interna emitir centenas de documentos de origem pública, somente por disposição legal a imposição subsiste. Nesta tênue linha, temos doutrinado a existência dos Documentos Privados de Interesse Público. Conceituamos que o Documento Privado de Interesse Público seria aquele documento que, mesmo sendo redigido de forma particular, e, portanto sem a obrigatoriedade dos rigores da lei, se obriga voluntariamente às disposições legais e seu conteúdo projeta-se na esfera de interesse público. Vejamos alguns exemplos: DECLARAÇÃO DE ENDEREÇO RESIDENCIAL OU PROFISSIONAL para fins de comprovação perante o DETRAN, BANCOS E OUTROS ÓRGÃOS - documento clássico no cenário jurídico nacional, onde “CAIO” declara que em determinado endereço reside “MÁRIO”. Reconhece-se a firma (assinatura) por autenticidade do declarante e dita declaração (particular) se projeta na esfera pública. DECLARAÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL pela via particular - cenário em que as partes de comum acordo desejam registrar as regras de sua convivência. Mesmo redigido em documento particular, uma vez assinada por ambas as partes, arroladas duas testemunhas, reconhecendo-se as firmas em Tabelionato de Notas, tem seus efeitos projetados na ordem jurídica, permitindo-lhes acessar uma gama de direitos e também obrigações. DECLARAÇÃO DE RECONHECIMENTO DE MATERNIDADE – situação em que “MARIA” precisa, além de apresentar certidão de nascimento dos filhos, emitir declaração de que as informações constantes da certidão são verdadeiras. Reconhece-se a firma (assinatura) no documento, e ele se projeto na esfera jurídica. PROCURAÇÃO PARTICULAR AD JUDICIA – documento através do qual JOÃO constitui como seu advogado a pessoa de “JOSÉ”, outorgando-lhe poderes para funcionar em determinados processos etc. Sequer é exigido o reconhecimento de firma em dito documento para sua validade. Notemos que todos os documentos relacionados acima podem ser feitos em forma pública através de Escrituras, Procuração etc, porém esta não é a forma exigida pela legislação pátria para validade dos mesmos. Face às considerações que tentamos expor, ousamos doutrinar no sentido de que o Apostilamento de Documentos não se restrinja aos documentos tipicamente públicos, mas que sejam ampliados àqueles cuja legislação não imponha óbice e/ou vedação (Documentos Privados de Interesse Público). Afinal, compete à administração pública o exercício daquilo que é expressamente determinado por lei, conquanto ao particular lhe é permitido tudo aquilo que a lei não proíbe. Reforça nossa linha de defesa o fato de que os efeitos da apostila são limitados, conforme previsão do próprio Manual da Apostilha divulgada pelo CNJ. Pelos efeitos limitados da apostila, temos que: i. UMA APOSTILA SOMENTE AUTENTICA A ORIGEM DO DOCUMENTO PÚBLICO. Ou seja, o faz certificando a autenticidade da assinatura no documento, a capacidade da qual a pessoa que assina o documento agiu e, se for caso, estabelece a identidade do selo ou carimbo aposto nos documentos;
ii. UMA APOSTILA NÃO CERTIFICA O CONTEÚDO DO DOCUMENTO PÚBLICO. Ou seja, uma apostila não se relaciona de forma alguma com o conteúdo do documento público. Enquanto a natureza pública do próprio documento pode implicar que o seu conteúdo é verdadeiro e correto, uma apostila não melhora ou adiciona qualquer significado legal para o efeito jurídico que a assinatura e/ou selo iria produzir sem a apostila; iii . UMA APOSTILA NÃO CERTIFICA QUE TODOS OS REQUISITOS DA LEI DOMÉSTICA RELACIONADOS À PRÓPRIA EXECUÇÃO DO DOCUMENTO PÚBLICO SUBJACENTE FORAM PREENCHIDOS. Ou seja, uma Apostila não certifica que um documento público foi executado de acordo com todos os requisitos de direito doméstico. É a lei interna do Estado que determinará se os eventuais defeitos encontrados invalidam a natureza pública de um documento e em que grau a Autoridade Competente é responsável para examinar documentos para tais defeitos. Por exemplo: o direito doméstico pode exigir ou não que uma Autoridade Competente fiscalize se um tabelião é autorizado para executar o ato cartorial particular ou certificado notarial em questão. A Convenção certamente não impõe qualquer obrigação a uma Autoridade Competente para fazê-lo. Uma Apostila não tem qualquer efeito jurídico além do que certifica a origem do documento, a sua emissão em um documento não remedia nenhum desses defeitos. iv. UMA APOSTILA NÃO AFETA A ACEITAÇÃO, ADMISSIBILIDADE OU VALOR PROBATÓRIO DO DOCUMENTO PÚBLICO. A Convenção da Apostila não afeta o direito de o Estado de Destino determinar a aceitação, admissibilidade e valor probatório dos documentos públicos estrangeiros. Em particular, as autoridades do Estado de Destino podem determinar se um documento foi forjado, alterado ou se foi validamente celebrado. Eles também podem estabelecer limites de tempo para a aceitação de documentos públicos estrangeiros (por exemplo: o documento deve ser produzido dentro de um determinado período de tempo depois da sua execução), ainda que tais limites não possam ser impostos sobre a aceitação da apostila em si. Além disso, mantém-se pelas leis da evidência do Estado de Destino para determinar em qual medida os documentos públicos estrangeiros podem ser utilizados para estabelecer um determinado efeito. Ora, nos termos da cartilha da Convenção de Haia e CNJ, (i) se uma apostila somente autentica a origem do documento público, (ii) se uma apostila não certifica o conteúdo do documento público, (iii) se uma apostila não certifica que todos os requisitos da lei doméstica relacionados à própria execução do documento público subjacente foram preenchidos, (iv) se uma apostila não afeta a aceitação, admissibilidade ou valor probatório do documento público, qual seria a razão para extirpar do rol de possibilidades do apostilamento os Documentos Privados de Interesse Público? Revela-se que a Convenção de Haia e o seu produto, o Apostilamento de Documentos, tem íntima relação com sua Origem do documento e seu assinante. Logo, conhecido as suas matrizes, permite-se avaliar sua existência e validade legal. Por todas essas questões, entendemos que a limitação do apostilamento aos documentos puramente públicos não coaduna com o espírito congregacional da Convenção de Haia. Impõe na matriz do documento limitação cuja análise, em tese, sequer lhe cabe, visto que quem irá determinar a utilidade do documento não é o país de origem e sim o país de destino. Por ora, é o que temos pensado. IGOR EMANUEL DA SILVA GOMES Sócio fundador de OGGIONI & GOMES Advogados Associados, escritório de advocacia especialista em Direito Notarial e Registral. 55 27 99758-8063 / 55 27 3376-6933 / igoremanuel.adv@gmail.com [1] O Manual da Apostilha é uma obra de referência, completa, concebida para ajudar as Autoridades Competentes no desempenho das suas funções no âmbito da Convenção sobre a Apostilha. Aborda as questões resultantes da aplicação prática da Convenção. http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/06/e3eb79734a719b4a987323523b8a3a6a.pdf [2] Defendemos que a Validação Oficial seja, no Brasil, o ato de Reconhecimento de Firma por Cartório de Notas. [3] Sim. Essa declaração existe e por vezes é exigida por alguns países signatários da Convenção de Haia. Fonte: CNB - CF | ||
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