ARISP: "A possibilidade de desdobro da matrícula e a problemática da restrição convencional" - Alberto Gentil Almeida Pedroso
Publicado em 25/07/2017
Introdução
O objetivo do artigo é provocar a reflexão sobre a viabilidade do desdobro da matrícula imobiliária em face das restrições convencionais impostas pelo loteador no momento da instituição e registro do empreendimento – em especial no tocante a metragem mínima do lote. De maneira geral, a imposição de restrição convencional objetiva “resguardar a qualidade urbanística do loteamento e garantir ao adquirente e aos demais proprietários de lotes o padrão do local e as características do empreendimento” (Proc. CGJ/SP n° 29/2006). As restrições urbanístico-ambientais convencionais conformam genuína índole pública, o que lhes confere caráter privado apenas no nome, porquanto não se deve vê-las, de maneira reducionista, tão-só pela ótica do loteador, dos compradores originais, dos contratantes posteriores e dos que venham a ser lindeiros ou vizinhos. O interesse público nas restrições urbanístico-ambientais em loteamentos decorre do conteúdo dos ônus enumerados, mas igualmente do licenciamento do empreendimento pela própria Administração e da extensão de seus efeitos, que iluminam simultaneamente os vizinhos internos (= coletividade menor) e os externos (= coletividade maior), de hoje como do amanhã. As restrições urbanístico-ambientais, ao denotarem, a um só tempo, interesse público e interesse privado, atrelados simbioticamente, incorporam uma natureza propter rem no que se refere à sua relação com o imóvel e aos seus efeitos sobre os não-contratantes, uma verdadeira estipulação em favor de terceiros (individual e coletivamente falando), sem que os proprietários-sucessores e o próprio empreendedor imobiliário original percam o poder e a legitimidade de fazer respeitá-las. (STJ, Resp. 302906 / SP, 2ª T., Min. HERMAN BENJAMIN, 26/08/2010) A tensão jurídica existente entre a perpetuação da restrição convencional no tempo e as novas realidades fáticas do imóvel, da legislação municipal e da efetivação dos próprios direitos e garantias fundamentais entabulados na Constituição Federal merecem apreciação verticalizada sobre a questão. A análise proposta é exatamente sobre o caráter absolutista da limitação unilateral imposta pelo loteador à época da constituição do empreendimento frente à evolução do mundo, mais precisamente em relação à exigência mínima de metragem do lote. Não descartada a importância do prestígio ao sistema urbanístico idealizado pelo loteador à época da constituição do loteamento é indispensável que o Registro de Imóveis espelhe a situação fática dos imóveis pertencentes a sua circunscrição imobiliária. 1. A propriedade residencial urbana como direito fundamental A Constituição Federal de 1988 (CF/88) traz no artigo 5º, caput¸ o instituto da propriedade – em sentido amplo – como Direito Fundamental[1] e no artigo 6º, afirma que a moradia é um Direito Social, nestes termos, é de se considerar que a propriedade imóvel encontra-se centrada no ordenamento jurídico e, portanto, dotada de valor inexorável quando atende a sua função social. O direito de propriedade remonta aos tempos remotos do mundo e passa por uma ponderação valorativa de cunho religioso conforme dispõe Fustel de Coulanges na obra “A Cidade Antiga”; é difícil precisar quando a propriedade imóvel passou a ser considerada de domínio privado, pois, nos primórdios, a concepção imobiliária era coletiva; não obstante, alguns documentos apontam para o imóvel privado já na Lei das XII Tábuas. Àquela época a propriedade era posta como intrinsecamente relacionada aos deuses lares que, segundo o autor, protegiam a família dos males que a vida comum expunha e, portanto, funcionava como garantia da vida digna. (COULANGES, 2005, pp, 65-77). Na concepção do Direito Canônico o homem está legitimado a adquirir bens, pois a propriedade privada é a garantia de liberdade individual. Neste contexto, ainda segundo São Tomas de Aquino, a propriedade é imanente à própria natureza humana, ainda que, deva fazer justo uso dela. (CÂMARA, 1981, p. 79). Nos tempos atuais a propriedade não apresenta valor sacro, especificamente em nosso ordenamento jurídico, ante a opção laica do Estado e o fato deste direito não estar dotado de caráter absoluto, como, por exemplo, na hipótese constitucional da perda da propriedade pela desapropriação – art. 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal. Não obstante, este direito ainda goza de fundamental importância na estruturação da sociedade atual. Embora a propriedade adormeça sob o manto de proteção da denominada primeira geração de direitos, qual seja: liberdades públicas[2], também possui íntima relação com os direitos de prestação positiva, relacionados à segunda geração de direitos fundamentais.[3] Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins ao falarem desta classe de direitos sociais “STATUS POSITIVUS” pontuam que o fundamento axiológico deste tipo de prestação material por parte do estado está pautado na melhoria de vida da população. (DIMOULIS, MARTINS, 2011, p. 60). Importante ressaltar que a titularidade do direito a propriedade depende do registro nos termos da Lei Civil. Porém, sua finalidade precípua, qual seja, a moradia, guindada a categoria de direito social na Constituição Federal, não traz em seu bojo uma indicação de titularidade, pois conforme o artigo 6º, do texto constitucional, os titulares são todos aqueles que necessitam de prestações relacionadas à educação, à saúde, à moradia e outras. (DIMOULIS, MARTINS, 2010, p. 85). Destarte, conforme previsão dentre os direitos fundamentais individuais e coletivos, a propriedade se consubstância em uma fundamental conquista do ser humano, pois ali o indivíduo estabelece sua moradia e protege sua família das intercorrências da vida cotidiana e, não obstante, o fato de ser condicionada pelo próprio texto Constitucional ao cumprimento da sua função social, corresponde a um dos maiores direitos conquistados pela humanidade [4]. A questão da função social deve ser entendida como um condicionante para todos, inclusive para o próprio Estado que deve pautar suas políticas públicas, também, nestes valores sociais. 2. O desdobro como concretização da função social da propriedade A aquisição de um imóvel confere ao adquirente à propriedade do bem, mas não lhe dá o direito absoluto de dele dispor e usar de maneira irresponsável. O Estado reconhece como direito fundamental a propriedade, mas adverte sobre o exercício responsável – função social – art. 5º, XXIII da Constituição Federal. A função social surge com a concepção de que, no seio social, o homem deve engendrar esforços para contribuir com o bem estar da coletividade. Trata-se de instrumento realizador das finalidades de bem estar dos habitantes das cidades[5] . Vale anotar que àquele que pretende instituir um loteamento urbano em sua gleba de terra deve observar as formalidades legais estabelecidas na Lei 6.766/79, bem como as exigências locais do Município. A imposição de restrições convencionais pelo loteador idealizador no momento da criação do loteamento com a finalidade de resguardar a qualidade urbanística do local e garantir ao adquirente e aos demais proprietários de lotes o padrão e as características do empreendimento é devida, e ao seu tempo, prestigia a função social da propriedade. Todavia, é discutível, à luz do dinamismo da função social da propriedade, a perpetuação no tempo das exigências de cumprimento das restrições unilateralmente previstas quando a fisionomia do loteamento não é mais aquela idealizada pelo loteador ou quando o Município, pautado no interesse social, estabelece Lei local mais flexível. O instituto da função social da propriedade é dinâmico, acompanha a evolução do mundo e os anseios mutantes da sociedade. O pedido de desdobro de lote, em contrariedade as restrições convencionais – metragem mínima de lote –sem dúvida afronta à disposição unilateral do loteador, mas, por vezes, contextualizado em seu tempo, atende de maneira mais efetiva a noção de finalidade social e interesse público. 3. O desdobro da matrícula de imóvel e as restrições convencionais de metragem mínima do lote Desdobro é a subdivisão de lote sem alteração de sua natureza, desde que permitida por Legislação Municipal. O pedido de desdobro da matrícula de lote urbano é pleito possível e que ileso de afronta às limitações convencionais e legais não comporta qualquer complexidade jurídica. O problema reside na solicitação do proprietário do bem imóvel de desdobro da matrícula imobiliária em contrariedade as restrições convencionais de metragem mínima do lote. O Professor Antonio Junqueira de Azevedo questionar se este tipo de obrigação, imposta unilateralmente pelo loteador, é eterna (AZEVEDO, 1997, p. 814). É de rigor a indagação sobre a prevalência no loteamento da imposição estática da restrição unilateralmente estabelecida pelo loteador em face da descaracterização urbanística da localidade. Sem embargos de posição, em sentido contrário, mostra-se descabido o apego à limitação convencional em contrariedade à Lei Municipal superveniente autorizadora do desdobro imobiliário. Se o Município reconhece, em benefício do interesse da coletividade, que o melhor para a função social da propriedade é legitimar o fracionamento físico dos lotes, não se sustenta a perpetuação das imposições convencionais levadas à registro. Idêntico raciocínio deve ser desenvolvido na hipótese de descaracterização física do loteamento idealizado pelo loteador. Em muitos casos o tempo, acrescido à omissão do loteador e também do Poder Público, – na fiscalização dos planos de urbanização moldados para cada loteamento – e mais a ação do indivíduo – na busca de melhor atender seus anseios de otimização do bem imóvel – corroeram as características de urbanização originariamente previstas. Diante do quadro de desdobro fático (divisão de lotes consolidados) – com moradias individuais devidamente muradas há décadas e regularizadas junto a Prefeitura local – é frágil sustentar a prevalência da limitação convencional a todo custo. O Registro de Imóveis deve espelhar a realidade posta do lote. A recusa do desdobro imobiliário, no caso em análise, provocará significativo abismo entre o fólio real e a realidade, em desprestigio à sociedade, e, em última análise, ao principio da especialidade objetiva – impondo ao interessado se socorrer da usucapião judicial ou extrajudicial para alcançar o mesmo objetivo. Nesse sentido, já se posicionou a Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, no processo n.º 2012/00108697: Recurso – Averbação – Desmembramento de lote – Cláusula impeditiva prevista em memorial descritivo do empreendimento – Inserção pelo Loteador – Afastamento da limitação convencional para análise das condições e peculiaridades do caso em concreto – Efeitos urbanísticos – Observância da função social da propriedade – Decisão mantida – Recurso não provido. Conclusão A ideia sustentada não é afastar de maneira irrestrita a força normativa das cláusulas convencionais, de maneira geral, em situação de normalidade. A proposta é compreender que a restrição unilateral não se eterniza através dos tempos quando desamparado de efetiva aplicação continuada. À luz do dinamismo da função social da propriedade, mostra-se desajustada a perpetuação no tempo das exigências de cumprimento das restrições unilateralmente previstas pelo loteador (metragem mínima do lote), em especial, quando a fisionomia do loteamento não é mais aquela idealizada ou quando o Município, pautado no interesse social, estabelece Lei local favorável ao desdobro. No caso, marginalizar o desdobro da matrícula no Registro de Imóveis com fundamento em restrição convencional ineficaz é impor à sociedade profundo descompasso entre a realidade e o fólio real. Se loteador, Poder Público e a sociedade de maneira geral foram negligentes com a preservação e mantença das características urbanística do loteamento instalado, entendo desarrazoado a observância perpetua de restrições convencionais ineficazes na prática apenas no Registro de Imóveis, contrariando em última análise o próprio princípio da especialidade objetiva. Por fim, saliento que obstado o desdobro de matrícula por afronta a metragem mínima do lote, em apego a restrições convencionais ineficazes, o que se estará fazendo na prática é apenas dificultando o óbvio caminho do ingresso de tal realidade no fólio real, providência que será seguramente alcançada pelo interessado, após o preenchimento dos requisitos legais, pela ação judicial de usucapião ou procedimento administrativo de usucapião. Referências Bibliográficas ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. trad., Ernesto Garzón Valdés. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. AZEVEDO, Antonio Junqueira. Restrições Convencionais de Loteamento: obrigações propter rem e suas condições de persistência. Revista dos Tribunais, (RT) São Paulo, 741/115, pp. 811-821, jul., 1997. BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 5ª. ed., trad. Fernando Pavan Batista e Ariani Bueno Sudatti. São Paulo: Edipro, 2012. CÂMARA, Maria Helena Ferreira da. Aspectos do direito de propriedade no capitalismo e no sovietismo. Rio de Janeiro: Forense, 1981. CARVALHO. Afrânio de. Loteamento e seu registro. Revista de Direito Imobiliário, (RDI) São Paulo, 8/9, pp. 773-788, jul.-dez., 1981. COULANGES, Fustel. A cidade Antiga. trad., Jean Melville. São Paulo: Martins Claret, 2005. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23.ed., São Paulo: Atlas, 2010. DIMOULIS, Dimitri. MARTINS. Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. FLORES, Patrícia Teixeira De Rezende; SANTOS, Bernadete Schleder dos. Comentários ao Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2002. HART, Herbert L.A. O conceito de Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed., São Paulo: Atlas, 2006. NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 10. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo entre o direito de propriedade urbana imóvel e o direito à moradia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 6. ed., 2. reimp. São Paulo: Atlas, 2006. v.2. ______. Direito Civil: direitos reais. 8. ed., São Paulo: Atlas, 2008. v.5. VILLEY, Michel. Filosofia do Direito: Definições e Fins do Direito: Os meios do Direito. 1ª. ed., trad., Marcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003. [1] Nos incisos XXII, XXIII, XXIV, XXV e XXVI do artigo 5º da CF/88 o tema é tratado com maior minudência. [2] Robert Alexy as classifica como um direito de ação negativa do Estado considerando que este grupo: “está constituido por los derechos a que el Estado no afecte determinadas propiedades o situaciones del titular del derecho”. (ALEXY, 1993, pp. 191-192). [3] Cumpre ressaltar que a classificação de direitos fundamentais em gerações encontra-se pautada em fatores históricos e cronológicos. (MORAIS, 2006, pp. 26-27). [4] Neste sentido segue o artigo XVII da Declaração Universal dos Direitos Humanos. [5] “Quanto à função social da propriedade urbana, deve o Poder Público chegar ao maior equilíbrio possível entre o interesse do proprietário e o da coletividade. [...] Com efeito, pelo uso da propriedade procura-se fazer justiça social, contribuindo para o desenvolvimento e planejamento urbano”. (FLORES; SANTOS, 2002, p. 15). Fonte: Arisp | ||
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