Na semana passada o Supremo Tribunal Federal publicou o julgamento que, sem votação unânime, equiparou a união estável ao casamento em efeitos sucessórios (Recurso Extraordinário n. 646.721).
Com essa decisão do STF, o companheiro, ou seja, aquele que vive em união estável, passou a ter o direito de herdar os bens exclusivos do falecido, no regime da comunhão parcial e da separação total de bens, enquanto antes tinha o direito de herdar os bens adquiridos onerosamente durante a união estável. Além disso, se antes os parentes colaterais, como os irmãos do falecido, conservavam o direito à herança, partilhando-a com o companheiro sobrevivente, após a decisão do STF, aqueles parentes não herdarão mais na ordem de vocação hereditária.
A diferença é imensa, como se vê.
Por óbvio, durante o período em que esteve em vigência a norma do art. 1790 do Código Civil, que foi modificada por aquela decisão, ou seja, de janeiro de 2003 até ser declarada inconstitucional pelo STF, todos os inventários e partilhas de bens pautaram-se pela legislação então vigente. Os chamados autores das heranças, por óbvio, acreditavam, antes de falecer, que seus companheiros herdariam somente os bens adquiridos onerosamente durante a união estável e que seus parentes colaterais conservariam o direito à herança.
Ocorre que, segundo o STF, a decisão que modificou os direitos sucessórios do companheiro deve ser aplicada a todos os inventários não findos, ou seja, às heranças de quem faleceu antes da publicação daquela decisão. E, segundo o voto condutor do Ministro Luís Roberto Barroso do STF, esse efeito retroativo da decisão teria a finalidade de preservar a segurança jurídica.
Mas aplicar a decisão a todos os inventários ainda abertos ao tempo de sua publicação com base na segurança jurídica, com todo o respeito, é uma evidente contradição.
Isso porque segurança jurídica é a circunstância de um cidadão conhecer, ou ao menos poder conhecer a lei e agir e reagir com base neste conhecimento. Quem quer viver em união estável deve ter a possibilidade de conhecer o ordenamento legal, para decidir se lhe convém ou não constituir essa entidade familiar, ou, até mesmo, mantê-la até a morte.
Assim, se quem faleceu antes da modificação do ordenamento jurídico quisesse que seu irmão herdasse, ou quisesse que a maior parte dos bens que adquiriu durante sua vida fossem destinados a um filho e não ao companheiro, sequer teve a oportunidade de realizar um testamento, por acreditar que o ordenamento que vigoraria em sua herança seria o da época de sua morte.
Sendo a preservação da segurança jurídica o objetivo do STF, a única alternativa possível para atingi-lo seria a aplicação da decisão do julgamento somente em relação às sucessões abertas após a data de publicação da decisão, ou seja, às heranças decorrentes de falecimentos posteriores à divulgação pública do que foi alterado por aquele Tribunal.
Além disso, o STF acabou por desrespeitar o Código Civil, que estabelece em seu artigo 1.787 que a lei que regula a sucessão é a lei vigente ao tempo de sua abertura, ou seja, ao tempo da morte do indivíduo:
Art. 1.787. Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela.
Ora, por óbvio, os inventários ainda abertos ao tempo da publicação da decisão do STF se referem a sucessões abertas antes da publicação da decisão do STF, ou seja, às heranças dos que faleceram antes disso.
Ao tempo da abertura dessas sucessões, o artigo 1.790 do Código Civil, que fixava os direitos hereditários do companheiro, não fora declarado inconstitucional. Isto só ocorreu com a publicação da decisão do STF, ocorrida em 11/09/2017. Em relação a todas as sucessões envolvendo união estável abertas antes desta data, os direitos sucessórios dos companheiros viúvos deveriam ser regulados pelo artigo 1.790 do Código Civil, pois este artigo estava vigente ao tempo das mortes de seus respectivos companheiros.
Se a segurança jurídica é a circunstância de poder o indivíduo conhecer qual é a lei vigente em um dado momento e quais são os seus efeitos jurídicos, agindo e reagindo conforme este conhecimento, então a segurança jurídica só pode ser preservada se os efeitos da decisão do STF se produzirem a partir das sucessões abertas a partir da publicação da decisão, pois, como muito bem advertiu o Ministro Ricardo Lewandowski, com voto vencido no julgamento do RE 646.721-RS:
“os que já estão mortos, evidentemente, não têm mais como interferir e reagir relativamente à decisão do Supremo Tribunal Federal”.
Por essas razões, entre outras, a ADFAS – Associação de Direito de Família e das Sucessões – que foi admitida como amicus curiae no referido Recurso Extraordinário – interpôs embargos de declaração, para que o STF elimine a contradição e determine a aplicação da decisão às heranças daqueles que vierem a falecer depois de sua publicação.
*Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões). Doutora em Direito pela USP e advogada
Fonte: Estadão