RIO — Um promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná negou o pedido de um transgênero para mudar os documentos pessoais porque, segundo ele, "o gênero de cada indivíduo é determinado pelo médico no momento do nascimento". Em um parecer, o promotor Inácio de Carvalho Neto trata o estudante Nathan Kirshner Tatsch, de 20 anos, como mulher. Ele sustenta que nem mesmo depois da cirurgia para mudança de sexo ele pode ser tratado como um homem e que, assim, alterar o registro seria "juridicamente impossível". AO GLOBO, Nathan disse que entrou em desespero.
— Quando vi a declaração do promotor, eu tinha acabado de ler sobre o lance do Conselho de Psicologia (um juiz do Distrito Federal liberou piscólogos para oferecer terapias de 'cura gay). Na hora, pensei: 'Será que tem como piorar o dia?'. E aí vi o meu processo — relatou o jovem. — Entrei em desespero porque achei que era a determinação do juiz. Não fiquei tão chocado, porque já esperava. Todo o processo é complicado. O que me assustou foram a linguagem e os motivos, os termos inadequados. Ele desmereceu e invalidou completamente minha identidade e minha existência.
O universitário conta que se reconheceu transgênero na adolescência, há quase cinco anos. Ele tinha 16 e estava no ensino médio quando teve as primeiras referências sobre a transexualidade e, em dois meses, "saiu do armário". Passou a usar o nome social, segundo ele, na escola, na faculdade e em todos os espaços. Até a família, conservadora e religiosa, só o chama de Nathan. Por tudo isso, vários trechos do parecer do MP provocaram espanto no estudante.
"O pedido de mudança do gênero feminino para masculino contraria frontalmente o ordenamento jurídico (...) Ainda que a requerente venha a realizar a cirurgia para a troca de sexo, essa cirurgia irá lhe atribuir um sexo que não tem e nem poderá ter, pois trata-se de uma cirurgia cosmética, não alterando seu sexo jurídico", escreve o promotor, que alega não haver, neste caso, "mudança dos órgãos internos".
ADVOGADO ALEGA ARGUMENTOS RASOS
Embora soubesse da possibilidade de uma manifestação contrária do MP, o advogado e amigo de Nathan, Vitor Leme, contou ao GLOBO que se surpreendeu com o parecer fundado em "desrespeito e ignorância" sobre a transexualidade. A defesa considera que o promotor usou argumentos rasos e se valeu da moralidade para se posicionar.
— Não esperava mesmo. É uma visão rasa juridicamente e, na minha visão, rasa na questão da transexualidade. Ele inventou termos, como sexo jurídico. Me parece que, sem pesquisar, ele fez uma manifestação com opinião própria, conservadora e retrógrada, que não está em sintonia com o MP. O Nathan me ligou chocado, se sentiu muito ofendido. Além de tratá-lo no feminino, que é desrespeito clássico, o promotor usa termos ofensivos, como dizer que a cirurgia é cosmética — frisou Leme.
No parecer, o promotor destaca também que a cirurgia de troca de sexo configura "crime de lesão gravíssima" porque "pode acarretar na inutilização permanente da função reprodutora". "A requerente nasceu com gênero FEMININO e nada pode mudar essa condição", reforça o representante do MP.
— Eu tenho esperança. Desistir não está nos meus planos, porque não existe a possibilidade de eu viver sobre outra identidade. Todo trâmite que tiver que ser feito, eu estou disposto a fazer — declarou Nathan.
MP REFORÇA POSIÇÃO PRÓ-IDENTIDADE
A ação é voluntária e passa pelo crivo do MP antes da decisão do juiz. Segundo Vitor, a sentença demora pelo menos um mês para sair e a expectativa é de que o magistrado divirja do protomor e conceda a mudança de nome para Nathan.
Em nota, o MP do Paraná esclareceu que o posicionamento institucional é pela possibilidade de retificar o registro civil em ações ajuizadas por pessoas LGBTs, independentemente de cirurgia de readequação sexual. A Promotoria, segundo o órgão, foi favorável à troca de nome em 31 ações neste ano.
No âmbito da própria instituição, segundo o MP, as pessoas são autorizadas a usar nome social desde maio de 2015. A decisão do promotor Inácio Carvalho Neto, neste sentido, diz respeito à "independência funcional assegurada a membros" do MP, sujeita à análise do juiz da Vara de Registros Públicos.
O GLOBO tenta contato com o promotor, mas não o encontrou até a mais recente edição desta reportagem.
Fonte: O Globo