A (des)necessidade de pagamento do ITBI pela anuência nas escrituras públicas e o posicionamento dos Tribunais - Por Rodrigo Reis Cyrino
Publicado em 27/11/2018
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo um estudo teórico e prático sobre a possibilidade ou não do recolhimento do imposto de transmissão sobre bem imóvel, também conhecido por ITBI, no ato em que comparece uma das partes para assinar uma escritura pública tão somente na condição de anuente/ciente de uma operação negocial de compra e venda, considerando que este figurou em contrato particular anteriormente firmado, mas que foi rescindido antes mesmo de concretizada a transmissão da propriedade, ocorrendo a venda posterior para terceira pessoa.
Em um primeiro momento será feita uma análise sobre o conceito do ITBI, o fato gerador e sua previsão legal, bem como um estudo sobre o que é anuência no aspecto civil e registral e se há reflexos no campo tributário.
Para tanto, a pesquisa trará uma pesquisa na doutrina, a legislação no Município de Linhares e o posicionamento dos tribunais pátrios acerca do tema.
2. O ITBI, SUA PREVISÃO LEGAL E FUNDAMENTO DA INCIDÊNCIA
Cumpre destacar inicialmente que a Constituição Federal, em seu artigo 156, inciso II, dispõe que compete aos Municípios instituir impostos sobre:
(...)
II - transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição (BRASIL, 1988).
Como objeto deste estudo, o ITBI se traduz em um tributo de competência municipal e, de acordo com o artigo 147 da Constituição Federal de 1988, do Distrito Federal, que incide toda vez que ocorrer uma transmissão onerosa de bens imóveis, de competência dos Municípios. Mas o que pode ser considerada uma transferência de um bem imóvel para efeitos tributários?
Num primeiro momento, importante trazer a distinção entre os direitos reais e os direitos pessoais. Para Silvio Venosa (2013, p. 05):
A ideia básica é que o direito pessoal une dois ou mais sujeitos, enquanto os direitos reais traduzem relação jurídica entre uma coisa, ou conjunto de coisas, e um ou mais sujeitos, pessoas naturais ou jurídicas. O exemplo mais adequado de direito pessoal é a obrigação, e o exemplo compreensível, completo e acabado de direito real é a propriedade. Pelo que se percebe, portanto, o direito real concede o gozo e frui¬ção de bens. O direito obrigacional concede um direito a uma ou mais prestações, a serem cumpridas por uma ou mais pessoas. O direito real define inerência ou aderência da coisa ao titular, expressão que serve para caracterizar o que comumente chamamos de soberania, poder ou senhoria sobre a coisa.
Nesse sentido, um contrato particular de compra e venda de um imóvel dá às partes somente um direito pessoal obrigacional, que pode ser desfeito a qualquer tempo, através de um distrato, por exemplo. Portanto, esse contrato particular, puro e simples, não confere um direito real à parte compradora, pois este só ocorrerá se ocorrer uma transmissão do imóvel junto ao registro imobiliário através de um título hábil ou uma escritura pública.
Como o ITBI incide sobre a transmissão de bens imóveis, o que pode ser considerado imóvel para o direito civil e como se opera a sua transmissão?
Para o Código Civil, a transmissão de um imóvel e seus direitos reais só se concretiza a alguém através do registro imobiliário e estabelece que:
Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.
Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais:
I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram
Art. 1.225. São direitos reais:
I - a propriedade;
II - a superfície;
III - as servidões;
IV - o usufruto;
V - o uso;
VI - a habitação;
VII - o direito do promitente comprador do imóvel;
VIII - o penhor;
IX - a hipoteca;
X - a anticrese.
XI - a concessão de uso especial para fins de
XII - a concessão de direito real de uso; e
XIII - a laje.
Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código.
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
§ 1o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel (BRASIL, 2002).
Portanto, cumpre ressaltar que somente há incidência do ITBI nos casos de transmissão da propriedade do imóvel mediante o registro imobiliário, o que não pode ocorrer no negócio jurídico particular de compra e venda, onde tão somente se transmitiu a posse, podendo este último instrumento ser distratado.
Frise-se que alguns Municípios em suas legislações estabelecem a possibilidade da incidência do ITBI com a transmissão entre vivos, a qualquer título, por ato oneroso, da mera posse sobre bens imóveis, mas este não tem sido o entendimento dos tribunais, conforme se verá a seguir.
Para aqueles que defendem incidência de ITBI sobre a transmissão de posse, alegam que a escritura pública celebrada demonstra, de forma clara e pública, a ocorrência do fato gerador de transferência de direitos do imóvel, descrito na forma do Código Tributário, a ensejar a obrigação tributária de recolher os impostos devidos aos cofres do Município, mas a posse não se traduz em um direito real, conforme rol do artigo 1225, do Código Civil.
Nessa toada, como visto, o fato gerador do ITBI só se aperfeiçoa com o registro do título ou uma escritura pública no Cartório de Imóveis (fólio real), momento em que se transfere efetivamente o bem imóvel ao comprador, conforme dispõe o Código Civil de 2002:
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
§ 1o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel (BRASIL, 2002).
Assim, o direito de propriedade só é constituído de fato com o registro imobiliário, momento em que o Oficial do cartório de imóveis deve analisar se o competente ITBI foi recolhido para proceder ao registro.
É a parêmia tão conhecida que diz “quem não registra não é dono”. De fato, o Código Civil brasileiro dispõe, em seu artigo 1.227, que “os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por ato entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247)”, o que implica que o portador de um título sem o registro imobiliário permanecerá na condição de mero possuidor.
Ademais, em sua essência, o ITBI incide sobre imóveis situados no município e é cobrado sempre que há transmissão onerosa da propriedade ou domínio útil de bens imóveis, sendo que para a transmissão da propriedade é necessário que o título seja registrado no competente Registro de Imóveis, de acordo com o artigo 1.227, do Código Civil.
No entanto, pode surgir a seguinte dúvida: quando na prática ocorrer uma cessão de direitos com força de transmissão de propriedade. Dentro dessa ótica, o professor de direito tributário, Eduardo Sabbag (2008, p. 381), ensina que:
Será a cessão de direitos fato gerador do ITBI quando possuir o timbre de transmissão de propriedade, com a efetiva traslação jurídica da propriedade do bem. Portanto, há de se frisar que um mero “contrato de gaveta” não tem o condão de ensejar o ITBI, por não materializar o fato gerador do tributo, que somente ocorre com o registro da escritura definitiva, em Cartório. São, portanto, enquadrados como fatos geradores do indigitado gravame aqueles atos que podem levar a pessoa que os recebe à aquisição do imóvel, equivalendo, portanto, à própria transmissão do bem.
Outro fato relevante é que muitos Municípios estabelecem em suas legislações que o ITBI deve ser recolhido no ato da escritura pública e não antes do registro imobiliário. Para Kiyoshi Harada esse fato é plenamente aceitável (2001, p. 333-334):
Embora a transmissão da propriedade só ocorra com o registro do título de transferência, no Registro Imobiliário competente, nada impede de a lei fixar o aspecto temporal do fato gerador desse imposto antes dela, não tendo a meor relevância jurídica eventual vício do título aquisitivo que venha impedir o seu registro, em face do que dispõe o art. 118 do CTN. O que importa é que o bem adquirido integre-se economicamente ao patrimônio do comprador.
Ao contrário, Leandro Paulsen (2018, p. 293), apesar de mencionar a existência de leis municipais antecipando o fato gerador do ITBI, menciona que esse não tem sido o entendimento jurisprudencial:
A transmissão de bens imóveis e de direitos reais a eles relativos dá-se mediante registro do respectivo título (como a escritura de compra e venda) no Cartório de Registro de Imóveis. O art. 1.227 do Código Civil dispõe que “Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro”. O art. 1.245, que cuida especificamente da aquisição da propriedade, dispõe: “Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”. De qualquer modo, pode o legislador determinar que o pagamento seja feito já antecipadamente, por ocasião da escritura, como medida de praticabilidade tributária que vise evitar o inadimplemento. Isso porque toda escritura deve ser levada a registro, de modo que se pode presumir a iminência do fato gerador. Mas o STJ já decidiu que “a pretensão de cobrar o ITBI antes do registro imobiliário contraria o Ordenamento Jurídico”.
Ora se a escritura pública ou um contrato particular formalizam uma situação meramente negocial entre as partes não é possível que nesse momento ocorra o fato gerador da incidência do tributo ITBI, que é a transmissão do imóvel, até mesmo porque tal instrumento pode ser distratado, podendo ocorrer duas hipóteses: 1) o vendedor transmite o imóvel a um terceiro que não o comprador originário, com fundamento em um distrato; 2) o comprador originário vende a um terceiro somente por meio de contrato particular, sem realizar a transferência do imóvel no registro imobiliário.
Nessas hipóteses, como fica a tributação? É possível a transmissão do bem diretamente ao terceiro sem o recolhimento de um ITBI?
Apesar de vários posicionamentos em contrário, a presente pesquisa defende a tese da possibilidade de inexigibilidade do recolhimento do tributo com o mero comparecimento do comprador originário na escritura pública ou no contrato de compra e venda na condição de anuente/ciente ou interveniente, a fim de declarar a ciência de toda a operação realizada, pois o imposto só incide se efetivamente ocorrer o registro imobiliário, o que se verá a seguir.
3. O CONCEITO PRÁTICO DE ANUÊNCIA
O termo anuência significa concordância com o que está escrito, bem como a ciência do ato pela parte, sendo muito comum que nas escrituras públicas se colha a assinatura de intervenientes cientes na condição de anuentes do ato, o que evita a alegação de eventuais prejuízos na órbita civil por este.
O termo anuência está previsto no artigo 220, do Código Civil que diz:
Art. 220. A anuência ou a autorização de outrem, necessária à validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento (BRASIL, 2002).
A anuência deve ser expressa, por escrito, e apresenta-se como ideal a anuência simultânea à realização do negócio jurídico, manifestada na própria escritura pública.
No entanto, o ato de anuência em uma escritura pública não tem o condão de transmitir a propriedade de um bem imóvel para o anuente, muito pelo contrário, este ato é firmado tão somente para evitar surpresas no campo obrigacional, não operando efeitos no plano dos direitos reais.
Ora, se a anuência não gera efeitos de direitos reais, na transmissão do bem imóvel, não há que se falar em incidência do ITBI pela menção desta no ato notarial, sendo este o posicionamento da jurisprudência pátria, que se analisará a seguir.
4. O NÃO RECOLHIMENTO DO ITBI NA ANUÊNCIA E A IMPOSSIBILIDADE DE IMPUTAÇÃO DE CRIME DE SONEGAÇÃO FISCAL
Assim, não obstante a possibilidade em tese da sonegação do ITBI para esses casos de mera substituição do comprador, a mesma não é automática, pois depende de previsão específica, o que numa análise conceitual percebe-se que a presença da figura do anuente ciente não concretiza o ato de “transmissão de um imóvel”, que é o fato gerador da exação tributária.
Com base nesses fundamentos, é comum na prática do mercado imobiliário que loteadoras, construtoras ou imobiliárias tenham em seus arquivos solicitações reserva de unidade, contratos de promessa de compra e venda e etc., o que não quer dizer que a compra e venda será efetivada com a quitação do preço, o que poderia dar ensejo à cobrança de ITBI através da transferência do imóvel.
Além disso, eventuais contratos particulares de cessão de transferência a novos adquirentes não legitimam qualquer transferência de propriedade ou muito menos a cobrança de ITBI, não havendo que se falar em sonegação fiscal no caso.
Por último, cumpre frisar que a fiscalização tributária dos Municípios só tem possibilidade de procederem à avaliação dos imóveis objetos de transferência, para fins de recolhimento do competente ITBI, se a transmissão efetivamente for ocorrer, o que permitirá a cobrança.
Dessa forma, instrumentos ou declarações que retratem meros direitos obrigacionais não autorizam o pagamento do ITBI sobre o negócio jurídico, assim como ocorre no ato denominado como anuência. Isto porque não há hipótese de incidência do tributo para o caso.
O Código Tributário Nacional regulamenta o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a eles Relativos (ITBI) em seu artigo 35, delimitando, também, sua hipótese de incidência e seu fato gerador:
Art. 35. O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador:
I - a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens
imóveis por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil;
II - a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia;
III - a cessão de direitos relativos às transmissões referidas nos incisos I e II.
Parágrafo único. Nas transmissões causa mortis, ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos sejam os herdeiros ou legatários.
Neste aspecto o CTN delimita o fato gerador do tributo como sendo a transmissão da propriedade, o que se dará de acordo com a lei civil, que estabelece em seu artigo 1.245 do Código Civil:
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